Um amigo fez-me chegar, através do Correio este texto do jornalista Daniel Oliveira. Como concordo com o que foi escrito e porque é preciso refletir, aqui fica ele:
"VALE A PENA LER E MEDITAR
"VALE A PENA LER E MEDITAR
Em frente a um estabelecimento
prisional, centenas de carros buzinam enquanto os seus condutores gritam o nome
de um dos presidiários. Trata-se de um político local preso por corrupção. O
seu delfim ganhou as eleições e o povo, feliz, quer dividir aquele momento com
o seu herói encarcerado. Esta vitória foi dele. Ninguém nega que ele roubou.
Roubou mas fez. Esta cena não se passa numa qualquer pequena cidade perdida no
Brasil dos coronéis. Não se passa no México do narcotráfico ou numa nova
ditadura nascida da ex-URSS. Passou-se em Oeiras, o concelho com maior
percentagem de licenciados de Portugal, um país democrático e supostamente
desenvolvido da União Europeia.
Explicar isto sem ser deselegante para
com os meus concidadãos não é fácil. Opto, por isso, por falar dos mitos que
são abalados pelo resultado de Paulo Vistas e da sua lista de homenagem ao
presidiário Isaltino.
Não é verdade que a descrença crescente
dos portugueses na democracia e nos políticos resulte de uma qualquer exigência
ética. Não é a corrupção que cria desconfiança perante a classe política. Mesmo
os portugueses mais ilustrados toleram bem a corrupção, desde que "deixe
obra" para si. Muito menos é a impunidade que cria revolta. Quando a
justiça faz o seu trabalho o eleitor trata de o desfazer.
Muitos dos que votaram na lista de
Isaltino aplaudirão com entusiasmo as intervenções públicas de Paulo Morais e
até as diatribes de Marinho Pinto. A corrupção incomoda-os. Mas o que os
incomoda não é o roubo. É serem eles os roubados. Se o corrupto lhes deixa
alguma coisa a corrupção deixa de ser um problema. Porque é apenas o seu
interesse pessoal, e não a exigência ética que nasce da pertença a uma
comunidade de valores, que determina as suas escolhas políticas. É por isso
que, para muitos portugueses, os seus direitos são direitos e os direitos dos
outros são privilégios, a sua greve é justa e a greve do outro é um transtorno.
O combate à corrupção não se faz com
discursos inflamados contra os políticos. Faz-se através de uma ideia de
solidariedade entre cidadãos que veem os recursos públicos como pertença de
todos e o seu uso indevido como uma falha sempre grave, seja qual for o
beneficiário. Só que, ao contrário do que se costuma dizer, Portugal não é um
país especialmente solidário. O que é normal, tendo em conta os seus altíssimos
níveis de desigualdade. A solidariedade nasce da pertença a uma comunidade.
Essa pertença só acontece quando há empatia. A empatia precisa de proximidade.
E a proximidade exige mínimos de igualde social e económica. As sociedades
desiguais são egoístas e, por isso, pouco escrupulosas na sua ética coletiva. E
assim é Portugal.
O fascínio que os eleitores têm pelas
listas independentes não resulta apenas de uma qualquer doença partidária que
promova a corrupção e o compadrio. Com isso, a maioria dos eleitores vive sem
qualquer problema. A desconfiança em relação aos partidos é, em Portugal, antes
de mais, uma desconfiança em relação às suas formas pouco democráticas de
seleção de pessoal político. Uma desconfiança justa e legítima (tratarei
amanhã), porque retira aos eleitores a possibilidade de escolha. Mas que nada
tem a ver com qualquer tipo de exigência ética.
A descrença nos partidos também resulta
da crise económica, pela qual estes são responsabilizados. Mas a alternativa em
que muitos cidadãos apostam é o atalho mais fácil: alguém que deixe obra
passando por cima das regras e da lei. A maioria dos eleitores comunga do
pragmatismo amoral de muitos políticos: desde que sobre alguma coisa para mim,
que se danem os bons costumes. E se a maioria dos eleitores é egoísta e pouco
exigente é natural que os políticos também o sejam. Afinal de contas, vivemos
numa democracia representativa. Os que elegemos limitam-se a representar o que
nós próprios somos. Não, o país não se divide entre políticos, de um lado, e os
portugueses, suas vítimas, do outro.
Por fim, este episódio recorda-nos que,
ao contrário do que se costuma pensar, não é a educação que garante uma
democracia saudável e exigente. Essa falta de exigência não resulta de
ignorância. As pessoas mais qualificadas não são eticamente mais rigorosas. O
bom funcionamento da democracia tem a ver com regras. É a definição de poucas
mais invioláveis regras que permite não misturar tudo no mesmo saco, como se
tudo (do pequeno atraso fiscal à corrupção) tivesse a mesma gravidade e
relevância. Definir linhas éticas claras e não nebulosas de suspeição, onde,
como todos cabem, nada chega a ser realmente grave. São essas regras que criam,
mesmo na cabeça dos eleitores, um ambiente de exigência formal ou um ambiente
propício à corrupção. São elas que acabam por instituir que há práticas
inaceitáveis.
Se Isaltino Morais tivesse sido travado
no primeiro momento em que prevaricou e tivesse perdido imediatamente o lugar
não teria tido oportunidade de criar as teias de interesses que criou. E não
teria conseguido passar a ideia de que o crime compensa. E que compensa a ele e
compensa aos eleitores, que se comportam como seus cúmplices. Nunca se poderia
dizer, sobre ele, que "rouba mas faz". Porque a regra seria esta:
"quem rouba não faz". Porque não roubar tem de ser a primeira
condição para fazer seja o que for no Estado. Não precisamos de políticos
puros, que nunca tenham falhado como cidadãos. Até porque eles não existem.
Precisamos de poucas regras cuja violação represente, para todos, a imediata
impossibilidade de exercer cargos públicos."
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